Apresentação dossier: Outra economia, outra tecnologia

 

 

Lais Fraga[1]

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Outra economia, outra tecnologia’ é um convite para conhecer e aprofundar as relações entre as utopias econômicas e as utopias tecnológicas. As experiências de Economia Solidária e de construção de alternativas tecnológicas se fortaleceram desde o início dos anos 2000 na América Latina e o encontro entre elas ganhou importância e se mostrou diverso em teorias, metodologias e perspectivas. A diversidade, no entanto, não deixa de aportar algo em comum: nessas duas décadas as experiências e reflexões sobre o binômio Economia Solidária e Tecnologia Social resultaram em aprendizados que deslocaram o debate e possibilitaram novos horizontes.

Dentre esses aprendizados, destacamos dois. O primeiro é o abandono de visões eufóricas, ingênuas e salvacionistas da tecnologia. Em substituição, adota-se uma perspectiva de ambivalência sobre o tema: é preciso colocar no centro de nossas ações e reflexões que, por um lado, a tecnologia tem contribuído para manter e atualizar as desigualdades de classe, gênero, raça/etnia, entre outras. Por outro lado, a ambivalência nos permite perceber que a tecnologia pode também contribuir com o enfrentamento dessas desigualdades.

A partir dessa maneira de compreender a tecnologia, a Economia Solidária permite questionar o dogma da empresa privada como o locus privilegiado da inovação e trazer para o centro da mudança tecnológica processos coletivos e autogeridos desde os setores populares. Do encontro entre Economia Solidária e a tecnologia, portanto, emerge a possibilidade de construção de imaginários sociotécnicos distintos dos que estão colocados.

Um segundo aprendizado que merece destaque é a compreensão da tecnologia não como um artefato, uma máquina ou um método, mas como um sistema complexo do qual fazem parte diferentes grupos sociais, entre os quais os setores populares. Não se trata, portanto, apenas de incluir os setores populares através do uso de tecnologias (democratizar o acesso às tecnologias

existentes), ou através do desenvolvimento de tecnologias alternativas (democratizar o processo de desenvolvimento tecnológico). Trata-se de compreender a maneira pela qual os setores populares já participam desses sistemas, na maioria das vezes de maneira subordinada, e de construir novos arranjos tecnológicos que possibilitem sua participação de maneira autônoma.

Um exemplo pode apoiar a reflexão proposta: pensando na realidade dos/as catadores/as de materiais recicláveis, ao invés de desenvolver pequenas adaptações no trabalho dessa categoria, como o desenvolvimento de carrinhos mais adequados para transporte dos materiais, passamos a considerar como alternativa tecnológica a necessidade de repensar a inserção com protagonismo dos/as catadores/as na cadeia produtiva da reciclagem e na gestão dos resíduos sólidos. Atualmente, na cadeia produtiva da reciclagem, é evidente que os catadores se encontram de maneira subordinada e, nesse sentido, um carrinho não seria suficiente para resolver tão complexo problema. É preciso reconhecer, no entanto, que essas experiências pontuais foram um ponto de partida para criação de redes que articulam sujeitos, parcerias, recursos financeiros e infraestrutura para melhor compreender a cadeia produtiva da reciclagem, a gestão dos resíduos sólidos e para conceber imaginários sociotécnicos distintos com protagonismo dos/as catadores/as. No Brasil, essa perspectiva, chamada de Reciclagem Popular, foi proposta pelo Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR).

Essa mudança de perspectiva sobre a tecnologia, ou sobre a mudança tecnológica, faz emergir novas teorias, metodologias, experiências e desafios que buscamos captar com este dossiê. Os artigos apresentados a seguir aprofundam, apontam caminhos e refletem sobre erros, acertos e aprendizados no processo.

O artigo que abre a seção especial é de Bruna Mendes Vasconcellos (Brasil) intitulado “Leituras feministas da Tecnologia Social”. A autora, a partir de lentes de gênero e raça, reflete sobre a experiência histórica da construção de alternativas tecnológicas no Brasil. Ao articular aportes do campo da Tecnologia Social e da Teoria Feminista da Tecnologia em termos conceituais, políticos e metodológicos, possibilita um olhar inovador sobre o tema da tecnologia inserido em experiências da Economia Solidária. A autora apresenta um esforço teórico de trazer para o primeiro plano conceitos como reprodução social, trabalho reprodutivo, divisão sexual do trabalho e cuidado para discutir sobre outra economia e outra tecnologia. Por fim, nos propõe “construir apostas tanto no sentido de pensar a produção de tecnologias para a reprodução, quanto de pensar o que seria a construção de uma política sociotécnica que tivesse a reprodução da vida como seu eixo articulador”.

O artigo que segue é de Luciano Villalba, Ailén Acosta, Diego Ezequiel Velázquez y Marcelo Stipcich, “El rol de la tecnología en una economía circular adaptada al contexto local: Reflexiones a partir del desarrollo de paneles de Telgopor reciclado para el mejoramiento de viviendas sociales” (Argentina). Os autores desenvolvem uma articulação entre a economia circular, economia popular e tecnologia desde uma perspectiva de geração de renda e melhoria das condições de vida dos setores populares. Para aprofundar a articulação proposta, tratam do caso de desenvolvimento de painéis de isopor reciclado para isolamento térmico usado em casas populares. O ponto de partida da experiência vivida e analisada é a recuperação e recirculação de materiais e a maneira como os setores populares lidam historicamente com o tema. A análise realizada ganha destaque por apresentar detalhadamente o processo de desenvolvimento, produção e uso da tecnologia, processos possibilitados pela articulação entre diferentes grupos sociais, com erros e acertos, além de questões teóricas e metodológicas mais amplas. Nessa perspectiva, o texto contribui para consolidar uma perspectiva que negue a modernização tecnológica como um dogma e nos aproxima de processos democráticos de mudança tecnológica que reconhecem os diferentes modos de conhecimento.

O artigo de Santiago Martín Errecalde y Jonathan Katz (Argentina) “Proyecto Chasqui: Tecnologías digitales para el desarrollo y fortalecimiento de la producción popular" propõe discutir o tema da economia e cooperativismo de plataforma a partir do caso do Projeto Chasqui. O projeto consiste na construção, fortalecimento e promoção de uma plataforma de comércio eletrônico que busca aproximar as estratégias de organização da produção, consumo e intermediação, no âmbito da Economia Solidária e Economia Popular. O artigo traz ao primeiro plano a discussão sobre cooperativismo de plataforma e o debate tecnológico a ele associado. Os autores destacam reflexões sobre como essas plataformas dependem de redes de atores que sustentam e dinamizam os intercâmbios, a necessidade de desenvolver capacidades, habilidades e conhecimentos e o papel das instituições científicas e tecnológicas no processo.

O quarto artigo, “De la digitalización al metaverso:  Las brechas digitales en las organizaciones sociales colombianas”, escrito por Aura María Torres Reyes (Colômbia), discute o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) e a digitalização em Organizações da Sociedade Civil (OSC). Tem como amostra de pesquisa 17 organizações pertencentes à Confederación Colombiana de ONG. A preocupação central da análise apresentada é caracterizar a brecha digital nas OSC a partir de quatro categorias de estudo: Econômica, Administrativa, Social e Participativa. Como pano de fundo, a autora explora como as tecnologias têm sido desenvolvidas, usadas e implementadas de maneira desigual, resultando em novas brechas, como a brecha digital. Ainda que o texto tenha foco nas OSC, a análise que realiza possibilita pensar o que estamos fazendo desde a Economia Solidária com as Tecnologias de Informação e Comunicação e repensar essas práticas a partir de um olhar crítico.

Por fim, o último artigo escrito por Sanyo Drummond, Aline Pereira e Isabela Aquino (Brasil) “Reação negativa ao processo de incubação de empreendimento de Economia Solidária” nos lembra que tecnologia também se refere à organização do trabalho e a toda complexidade das relações humanas. O foco do artigo é a análise do processo de incubação de empreendimentos de Economia Solidária a partir da perspectiva da psicanálise das organizações e da psicossociologia clínica. Especificamente, os autores refletem sobre um caso de término do processo de incubação realizado por uma incubadora universitária associado à dificuldade de formalização do empreendimento.

Os artigos, de maneira geral, têm como preocupação central contribuir no enfrentamento de desigualdades persistentes nos âmbitos econômico e tecnológico. Em síntese, a perspectiva crítica da tecnologia emerge de maneira evidente nos textos. São perspectivas teóricas enraizadas na prática que, de alguma maneira, contribuem para desfazer perspectivas simplistas sobre o tema. Além disso, a compreensão da tecnologia como um sistema complexo ganha importância, dando robustez às análises e reflexões apresentadas. Para além de artefatos, as situações problemas apresentam o contexto, a rede de atores/grupos sociais envolvidos, as questões técnicas, os erros e acertos no processo.

No entanto, as desigualdades de gênero e raça/etnia não aparecem na maior parte dos textos que compõem o dossiê, evidenciando que a perspectiva interseccional que reconhece que as diferentes desigualdades compõem uma trama, uma maneira complexa de compreender a realidade desigual, não está na agenda deste encontro entre outra economia e outra tecnologia.

Ainda que a perspectiva crítica da tecnologia esteja presente, nos parece importante resgatar o aporte da chamada do dossiẽ que afirmava que no coração da perspectiva salvacionista da tecnologia está o racismo fundacional de nossas sociedades, que considera a mudança tecnológica como um processo evolutivo com intuito de superar as formas tradicionais de produção e organização da sociedade, e o sexismo que considera as atividades socialmente atribuídas às mulheres como não tecnológicas. Olhar para as teorias, metodologias e experiências de Economia Solidária sob uma ótica interseccional é um desafio que permanece.

 

 

 

Lais Fraga

Editora invitada

 

 



Otra Economía, vol. 15, n.28, 54-57   –   julio/diciembre 2022     –    ISSN 1851-4715   

 

CÓMO CITAR ESTE ARTÍCULO: Fraga, L (2022). Apresentação dossier: Outra economia, outra tecnologia. Otra Economía, 15(28), 54-57 

 

[1] Professora associada da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2315-389X